"Boa noite", eu disse. E, levantando a voz pra ser ouvida acima dos sons arabescos: "O senhor poderia, por favor, errr... mandar parar a música? Incomoda um pouco os gatos, e eu não vou conseguir fazer a entrevista porque não dá pra escutar direito com esse barulho todo."
O Odalisco, sem me olhar, gritou para o breu - "
... de um povo heróico o brado retumbante, ai meu cu, ai meu cu, aiiii meu cuuuuu!..."
A música cessou, subitamente, deixando o último berro do Odalisco a ribombar solitário pela copa das árvores.
O gato preto apareceu, mais arrepiado do que nunca, e com todas as unhas desembainhadas: "O que foi que eu te disse? Uma noite
LINDA, e você
tinha que chamar esse sujeitinho pra acabar com a nossa tranquilidade! Vou arranhar ele inteirinho!"
"Você não vai arranhar ninguém", eu falei severamente. "Sou eu que mando aqui. Trate de guardar essas garras."
E, dirigindo-me ao Odalisco: "O senhor poderia nos explicar, seu Odalisco, qual o motivo desta sua, digamos, fixação anal? O senhor só fala em 'cu' o tempo inteiro! É um tanto impressionante, esta sua mania - o senhor não acha? Existe alguma explicação para isto?"
O Odalisco, ainda olhando para as trevas que o rodeavam, apenas disse vaga e abstrusamente:
"Neguim passa a noite mordendo a fronha e acorda com uma raiva dos diabos, achando que fui eu que o comi e não paguei..."
O Cheshire mostrou a risada escancarada: "Eu não disse que ele agora usa gíria carioca? Olha aí o 'neguim'..."
"Se vocês ficarem me atrapalhando, eu não vou conseguir fazer entrevista nenhuma", eu disse. E, voltando a me dirigir ao Odalisco: "Hein, senhor Odalisco? Voltando ao assunto, eu falava desta sua mani..."
Mas o Odalisco me interrompeu com um berro: "
Isto é a revolta sem fim de um cu dolorido! De um cu dolorido - está me entendendo, sua vaca? Um CU DO-LO-RI-DO, fique sabendo!"
O angorá abriu os olhos para declarar: "... em matéria de imbecilidade, eu nunca ouvi nada parecido. Quer fazer o favor de mandar esse sujeito embora daqui? Ou você pretende passar a noite inteira ouvindo esse pilantra berrar obscenidades sem pé nem cabeça? "
O Cheshire completou: "O que quer dizer que, se as obscenidades tivessem pé e cabeça, talvez valesse a pena ouvi-las. O que é debatível.
EXTREMAMENTE debatível, pra dizer o mínimo."
O Odalisco virou-se violentamente para o Cheshire, que tinha desaparecido de novo: "Vai tomar no cu, seu gato cocô!"
Os siameses gêmeos interromperam pra dizer em uníssono: "O vocabulário da criatura parece ser um tanto curto. Talvez ele só saiba dizer isso, mesmo."
Uma gata branca malhada de cinza apareceu de repente, e mirou fixamente o Odalisco por alguns segundos: "Isso aí me parece um tanto ou quanto perigoso. Está com os olhos vidrados e babando. Eu acho que deveria estar, pelo menos, usando uma focinheira. Parece rábido."
O Odalisco, de fato, parecia estranho, e repetia entredentes: "...que eu o comi e não paguei! Por que deveria pagar, se o comesse? Ele é que deveria pagar, se me comesse! O cu, o cu, o cu! Tudo se resume ao cu! O cu dolorido - o cu, centro do mundo! Onde está a Marcia Tiburi, numa hora dessas?!"
E, girando em torno de si mesmo, bradou mais alto: "Vocês vão todos tomar nos seus cus, seus cocôs! E tenho dito! O mundo me aguarda, tenho mais o que fazer! São BILHÕES de cus espalhados por aí, sem falar nas pirocas, e eu aqui, perdendo tempo com vocês!"
E, voltando-se para mim, aproximou-se, com ar feroz. O gato preto, com os pelos da cabeça arrepiados como uma auréola negra, desembainhou as unhas novamente e postou-se num ramo de árvore logo acima do Odalisco, pronto a avançar sobre a sua cabeça, para me defender se fosse preciso: "E você, sua va-ca! Como
ousa tentar me entrevistar?" - e, mordendo as palavras como se fossem pedras: "Eu
ORDENO o destino de todos os cus do mundo: é só o que me interessa, sua vaca! Vaca, vaca,
VAAAAACAAAA! Cu, cu,
CUUUUU! Cocô, cocô,
COCÔÔÔÔ! Piroca, piroca,
PIROOOOCA!!!!! Pronto! Eis aí resumida a minha filosofia: a maior do mundo, em todos os tempos! A primazia absoluta do cu!!!!! E agora adeus, que eu preciso recapitular meus estudos sobre René Negón!"
E POFT - o Odalisco desapareceu, num estouro que deixou um cheiro de pólvora no ar.
Os gatos ficaram um instante atônitos, até que o angorá gordo quebrou o silêncio:
"Bom, acabou, né? Vê se não inventa mais coisas deste tipo, daqui pra frente. E, se tiver que chamar alguém, da próxima vez chame alguém que tenha alguma coisa a dizer" - e encerrou com a sua tirada habitual: "For Pete´s sake. O amigo preto ali tem razão: você
realmente sabe como estragar uma noite
LINDA!..."